O arroz doce, como toda a gente sabe, faz há tempos infinitos parte da gastronomia portuguesa e toda a festa, fosse de aniversário, de casamento ou de qualquer outro acontecimento digno de ser comemorado, que não tivesse a sua presença não era festa que merecesse a pena ser mencionada. O arroz doce fazia parte, como se diz agora, da nossa identidade. Cada povo tem a sua guloseima preferida e a nossa era, de Norte a Sul do País e da casa rica à casa pobre, o arrozinho cozido com leite e açúcar e com ingredientes vários segundo a terra, a imaginação e a generosidade de quem o confeccionava. Mas era sempre bom e disso não restam dúvidas. Ainda há restaurantes e tabernas, certamente saudosistas, que teimam em apresentá-lo como sobremesa, artisticamente decorado com a clássica e tradicional canela. Enfim um regalo antigo que ainda faz furor apesar da globalização culinária, a pior de todas, que por toda a Europa se vai espalhando paulatinamente. Até quando, Catilinas da ordem gastrólata.?
por Liberto Cruz
Tal como os comboios, um prato de arroz doce pode sempre esconder um outro. Este facto seria louvável se os pratos a que me vou referir tivessem o gosto, o saber, o sabor, a qualidade e a contextura da tradicional sobremesa portuguesa, sempre tão apreciada e nunca esquecida, apesar dos atopelos que nos vêm surgindo ultimamente com nomes apatetados que a nada correspondem. Razão tinha Júlio Dinis quando se queixava, pelos anos sessenta do século dezanove, da " usança de dar a qualquer pastel ou empada o nome de um general do exército; a qualquer açorda o de um ministro célebre; a qualquer doce balofo e insípido o de um poeta da moda. " Mal sabia o autor de " Uma Família Inglesa " que, pouco mais de século e meio depois, todas as citadas classes viriam a ter representantes na categoria dos pratos de arroz doce. Deixaram de aparecer à mesa e passaram a representar-nos em todas as categorias possíveis e imagináveis. Não seria um mal se tivessem a variedade corrente e sempre desejada da diferença, do capricho, da região e do engenho de quem o apresenta e se esmera na sua elaborada confecção.
Infelizmente, embora haja raríssimas excepções, os que servem de pratos repetidamente acabam, é a lei natural das coisas, por se tornar desenxabidos e impróprios para consumo. Não é um arroz estragado, diga-se em abono da verdade, mas é constantemente um arroz já visto, já demasiado visto, sem galhardia, fatigado e a perder a canela deixada pelos recortes do papel ou da mão hábil e experimentada. Um arroz doce de segunda, em segundo prato, se me permitem a expressão, que se apresenta convicto, julgando-se insubstituível, único e o melhor da sua cozinha, seja ela qual fôr. Um arroz doce assim não tem remédio e nunca terá cura. O pior é que continua a viajar em nome das várias comunidades. Uma vez nomeado, arranja logo maneira de alterar os estatutos, de nunca ser reformado, de estar sempre presente, de ser eterno prato de arroz doce. Acaba mesmo por ser o prato de arroz doce de si próprio. E não há nada, julgo eu, que seja pior do que isto. Moralidade : é preciso renovar os cozinheiros.
Sem comentários:
Enviar um comentário